Voltamos ao ponto de partida?

Publicada em outubro/2023

” For decades, we have piled deficit upon deficit, mortgaging our future and our children’s future for the temporary convenience of the present…. You and I, as individuals, can, by borrowing, live beyond our means, but for only a limitedperiod of time. Why, then, should we think that collectively, as a nation, we are not bound by that same limitation?”

Ronald Reagan, 1981, Inauguraladdress

Um problema de Gerações

Nas últimas semanas, um assunto recorrente no noticiário econômico e nas preocupações dos analistas voltou a ser o das contas públicas. Tem surpreendido, particularmente, o fato do crescimento econômico acima do esperado não estar se refletindo na arrecadação de impostos.

O foco no tema das finanças públicas no Brasil se dá pela nossa história e impacto que têm em todas as esferas da sociedade. Muitas vezes, não percebermos como interagem com outros agregados econômicos mais observáveis do cotidiano, como o nível de preços, juros, emprego etc.

O que espera o governo?

De forma simplificada, o Novo Arcabouço Fiscal funcionará como um tipo de meta fiscal. Assim como nas metas e inflação do Banco Central, o Governo estabelecerá metas de resultado primário e se comprometerá em alcançá-las. Além disso, a nova legislação prevê mecanismos de restrição para eventuais descumprimentos.

Os cenários de referência estabelecidos pelo governo, a partir da nova regra fiscal, são de resultados primários em relação ao PIB de 0,0%(2024), 0,5% (2025) e 1,0% (2026), conforme o gráfico a seguir. Neste mesmo gráfico, o cenário base se refere às expectativas anteriores ao arcabouço:

Projeção do resultado primário do Governo Central nos cenários base e referência (% do PIB)

Fonte RPF: Jul/23

O déficit fora da curva em 2027 de -1,1% se refere ao ano no qual seriam pagos os precatórios que foram represados desde 2021, a partir da PEC 46/2021 que colocou um teto para o seu pagamento.

O principal resultado esperado ao se alcançar as metas primárias é a estabilização em médio/longo prazo da dívida pública. No horizonte relevante, considerando o cenário de referência, a expectativa é que a Dívida Pública Bruta do Governo Geral termine 2032 em 71,2% do PIB.

Projeções da dívida pública (% do PIB)

Fonte RPF: Jul/23

A título de comparação, não atingir as metas de superávit fiscal levaria o endividamento a uma constante trajetória de crescimento. O Cenário base elaborado pela Instituição Fiscal Independente (do Senado Federal) mostra a trajetória esperada do endividamento nessas condições.

Projeções da IFI para a DBGG em momentos selecionados (2023-2032) – % DO PIB – Cenário base

Fonte IFI: Jul/23

No contexto de dificuldade de estabilização do resultado primário, a projeção da relação Dívida / PIB para 2032 seria de 93,3% do PIB.

Esses pontos demonstram a importância do aperfeiçoamento do ambiente fiscal nos próximos anos. A eficácia desse objetivo dependerá de um sério comprometimento do governo e congresso.

O Estado e a Economia 

No texto sobre valuation (texto aqui) trouxemos a abordagem econômica clássica da relação entre a produção e a comercialização das mercadorias. Em resumo, agentes privados produzem bens que são desejados pela sociedade, negociando-os por meio de trocas em diversos mercados. No entanto, existe uma classe especial de bens que, de forma privada, são muito difíceis de serem viabilizados, são os chamados Bens Públicos.

Esses bens guardam duas características principais: Quando passa a ser produzido, ninguém pode ser impedido de utilizá-lo, e a sua utilização por alguém não diminui o uso de outro.

A segurança nacional é um exemplo de bem público. A partir do momento em que um exército é criado, toda sua área de proteção usufrui deste serviço, independentemente de se pagar por ele ou não, ou seja, o fato de um cidadão ser protegido pelo sistema de segurança nacional não deixa outra pessoa menos protegida automaticamente.

O Estado é o único agente que pode viabilizar esse tipo de bem por possuir uma forma de cobrança universal sobre a sociedade, os tributos. No contexto econômico, essa é a primeira função clássica do Estado, a Função Alocativa. Além dela, o Estado também atua em outras 2 funções complementares: a Função Distributiva (redistribuição de rendas) e a Função Estabilizadora (políticas econômicas).

O Orçamento Público

Em um breve esboço das contas públicas, do lado das despesas temos os custos dos bens e serviços públicos ofertado pelo Estado, e do lado das receitas os tributos recolhidos por força de Lei. A diferença entre ambos é o que chamamos de Resultado Primário, se positivo ele é um superávit e se negativo um déficit.

Embora a técnica orçamentária básica seja simples, a elaboração do orçamento envolve um complicado jogo político. Dessa forma, quando os inúmeros tomadores de decisão determinam as rubricas orçamentárias que merecerão a alocação de recursos, necessariamente escolhem algumas em detrimentos de muitas outras.

Quanto mais os governos fazem o Estado aumentar, se distanciando de suas funções originais, e atribuindo-lhe novas, maiores serão os gastos necessários para financiar tais projetos. Por outro lado, não é possível um país arrecadar tanto quanto necessitaria sem gerar um enorme desgaste político pelo ônus causado à sociedade.

Cabe a distinção de que, assim como nas finanças pessoais, os gastos estatais se apresentam em duas formas distintas e com implicações diferentes no endividamento: Investimento (Longo Prazo) e Despesas Correntes (Curto Prazo).

Mesmo desconsiderando os aspectos de corrupção e ineficiências dos gastos, quanto mais inflado o Estado, menor a sua capacidade de realizar todos seus objetivos ao mesmo tempo.

Endividamento

Quando se esgota a capacidade de autofinanciamento do Estado, ou seja, quando há geração de déficits recorrentes, a única forma restante de financiamento é o endividamento público.

Reagan, em seu discurso, faz uma analogia muito frequente entre as finanças pessoais e a administração Estatal, traça a ideia de que nós, como indivíduos, podemos viver além de nossas capacidades por um período limitado, por meio de financiamento. O Estado, pensado coletivamente como nação, também está sujeito à mesma lógica.

Por exemplo, se estamos interessados em adquirir um bem de alto valor, como um imóvel, podemos tomar um financiamento para adquiri-lo imediatamente. Quando fazemos essa escolha, de certa forma, estamos sacrificando nosso consumo futuro em troca de um benefício presente.

Ao mesmo tempo, se nossos gastos correntes são superiores à nossa renda mensal, por um breve momento podemos utilizar temporariamente artifícios como o Cheque Especial ou o Cartão de Crédito como forma de financiamento. No entanto, nos períodos subsequentes teremos de arcar com essa diferença.

As finanças públicas funcionam de forma comparável, quando os objetivos imediatos do Estado são maiores que sua capacidade de arrecadação, adiantam-se os projetos futuros para o presente por meio de financiamento.

A limitação em ambos os casos reside na capacidade de geração de renda futura para a gestão deste financiamento.

Quando o endividamento é perigoso

O endividamento por si só não é algo ruim, mas é um ponto de alerta. Por isso, o mais importante é sempre avaliar a qualidade da dívida.

No caso do Estado, o resultado primário passa a ditar o comportamento da dívida no futuro. Se a política de governo gera constante déficits, o comportamento da dívida pode passar a ser explosivo. Esse eterno ciclo de déficit primário e endividamento cria uma espiral potencialmente maléfica para a economia.

O Brasil nas décadas de 80/90 passou por uma situação muito similar. O Milagre Econômico brasileiro dos anos 70 só foi possível por meio de elevados investimentos Estatais bancado por crescente endividamento (externo na época), que fragilizaram as contas públicas.

Essa fragilidade se tornou um problema grave quando o contexto macroeconômico global se colocou contra o Brasil. Naquela época, o FED elevou abruptamente as taxas de juros americanas, numa sinalização clara de que não tolerariam o processo inflacionário pelo qual passavam, política essa que ficou conhecida como o choque Volker. O custo de nosso financiamento, exposto a essa nova realidade de juros americanos, levaram à explosão da dívida brasileira.

Como estamos hoje?

A preocupação quanto ao equilíbrio das contas públicas no Brasil e o escrutínio dos agentes em relação às ações do governo se conectam com o medo de retornamos a esse cenário que custamos muito deixar para trás.

Nos últimos 10 anos, entretanto, essa vem sendo uma pauta muito recorrente por conta da evolução da relação entre a dívida pública e o PIB. A pergunta sempre é “até que ponto os governos vigentes estarão comprometidos com essa causa?”. Desde 2015, foram feitos diversos esforços para o reequilíbrio das contas públicas, mas a constante instabilidade política, jurídica, e econômica, desde então, sempre colocam em xeque a crença de que o resultado pretendido será atingido.

O Teto de Gastos de 2016 foi uma importante tentativa nesse sentindo, mas suas regras, consideradas muito restritivas, não foram suficientemente fortes para evitar que uma série de arremedos levassem à sua ineficiência.

O Novo Arcabouço fiscal é a nova tentativa de resolução da questão fiscal do país, e todos os olhares estão atentos para sua execução. De forma técnica ela tenta unir “o melhor dos dois mundos”, permitindo mais flexibilidade que o Teto de Gastos ao orçamento público, ao mesmo tempo que prevê mecanismos para a sua contenção.

O receio, entretanto, permanece o mesmo: Até que ponto esse e os próximos governos estarão comprometidos com as metas propostas. Se não estiverem, quão fácil será descumpri-la.

É importante ressaltar que nossa situação atual é muito diferente do que ocorreu nos anos 80/90. Apesar dos percalços durante o caminho, em muitos aspectos, como nação, aprendemos com os acontecimentos que experimentamos no passado.

Apesar de as incertezas nos assombrarem e, naturalmente, nos trazerem ceticismo quanto ao futuro, o sucesso na boa gestão das contas públicas pode contribuir para um horizonte promissor do ponto de vista econômico.

A sustentabilidade econômica

As preocupações com as contas públicas não são exclusivamente brasileiras e afetam até mesmo as nações mais poderosas. O recente rebaixamento da nota de crédito dos Estados Unidos, pela agência de rating Fitch, é um aceno do mercado do tipo: “Ei, você ainda é a nação mais poderosa do mundo, mas a qualidade das suas contas está diminuindo e estamos te observando”.

Grandes esforços estão sendo feitos em diversos países e em diversos contextos para tratar desse tema tão importante e pertinente à sociedade.  A eficácia de cada um deles, só o tempo dirá.